O CORPO DE DENTRO
O primeiro disco do guitarrista Lourenço Rebetez não é de um guitarrista. Sua cabeça é de arranjador, é diferente. Pouco importa saber que o instrumento de Quincy Jones era o trompete, de Nelson Riddle o trombone, e que Chiquinho de Moraes era pianista. O instrumento de Lourenço é o mesmo, a caneta.
Lourenço tem cabeça de compositor. Na sua criação usa a cabeça e o ouvido interno, expressão que o maestro Heitor Villa-Lobos empregou quando lhe perguntei como conseguia compor alheio à zoeira da feijoada em seu apartamento com vista para o Central Park. A caneta e o ouvido interno são os instrumentos de Lourenço Rebetez em seu CD de estreia, chamado não fortuitamente de O Corpo de Dentro.
Não é preciso ouvir muito para perceber que seu processo criativo foge completamente ao convencional. Em sua cabeça, a composição já nasce com a orquestração, é um processo simultâneo nas duas atividades distintas, ordenadas na cronologia instituída: primeiro compor, segundo orquestrar. Nele, as duas se misturam, nascem juntas. Para esse jovem guitarrista que estudou em São Paulo e cursou a Berklee College of Music de Boston, onde se formou em composição de jazz, um motivo apenas rabiscado em papel, um mero fragmento melódico, induz a um caminho que, guiado por seu ouvido interno, vai sendo processado numa orquestração.
A música de Lourenço não procede de uma narrativa; ela tem uma textura sonora de módulos soltos que vão e voltam (Sombrero), ou vão e não voltam mais. São como temas independentes que se sucedem, dependurados sob o mesmo título, criando climas abertos para dar liberdade de improvisação aos solistas participantes. Acontece em Ozu.
Na sua concepção, Lourenço não adota o sistema de exposição de um tema seguido de solos individuais baseados na harmonia da composição. Inspirado pelas partituras de Moacir Santos, Gil Evans e Charles Mingus, que estudou a fundo, ele se apaixonou por esse modelo em que a orquestração é a composição.
Não é raro Lourenço subverter o método tradicional em que instrumentos mais agudos são posicionados no alto do acorde e os mais graves, no fundo. Como Duke Ellington fez em Mood Indigo em 1930 ao deslocar a clarineta como voz grave e o trombone como aguda, ele também gosta de criar inversões, dispondo, por exemplo, um trombone no meio de dois saxofones tenores em vez de colocá-lo na posição inferior do acorde. Assim manobrando, constituem-se timbres diferentes do habitual.
“O grande ensinamento de Duke Ellington é arranjar a harmonia dos sopros de uma maneira linear, horizontal. Cada instrumento não atua só como suporte para a melodia principal, ao contrário, tem sua identidade melódica própria. Assim as vozes do meio aparecem e cada instrumentista toca de uma forma diferente, com personalidade, mesmo quando não está tocando o lead. A harmonia vira esse tecido de diversas melodias, ao invés de uma voz principal e os outros indo atrás. O que eu faço não é muito diferente”, explica.
Além dos sete temas, Lourenço incluiu uma abertura e dois interlúdios que separam grupos de composições. “Os interlúdios não são composições que se desenvolvem, são aforismos, ideias, uma sugestão”, acrescenta Lourenço, que dá a seus temas títulos mais ou menos aleatórios, cuja sonoridade tem uma relação intuitiva com a estética das suas composições: Birjand e a lírica Punjab.
Pontieva, nome de uma orquídea, também. Nesta, Lourenço tem uma participação mais efetiva à guitarra. No disco, porém, preferiu mostrar suas composições com os módulos girando e reaparecendo seguidamente pois assim, pode-se perceber, funcionam como um pedal. “Essa coisa do pedal eu aprendi ouvindo o Wayne Shorter”, revela sobre a questão, justificando que “o pedal é uma coisa estática mas com o restante que vai mudando, provoca uma energia”.
“Um compositor de jazz”, comenta, “lida necessariamente com o improviso e com a individualidade de quem está tocando a partitura. Senão, seria compositor de música clássica. A graça, como em Mingus ou na Maria Schneider, é equilibrar os momentos de dar liberdade aos músicos improvisarem e os momentos de retomar o controle como compositor. Não quero uma gravação engessada, quero que eles toquem à vontade, sem medo.”
É o que também chama a atenção no CD de Lourenço. Atrás de cada um desses nomes pouco conhecidos está um músico tocando à vontade diante de uma partitura. Ultimamente, tenho sentido a considerável evolução dos músicos brasileiros a ponto dos instrumentistas levarem vantagem sobre os mais recentes cantores, compositores e até letristas. Minha curiosidade em confirmar se a razão para isso está na escolaridade é satisfeita quando Lourenço esclarece quem toca neste CD: “Os músicos dos sopros são da minha geração, tocam por aí, são de São Paulo, amigos meus. Esse pessoal toca em big bands, alguns com cantores ou em musicais, fazem música instrumental, são muito preparados, alguns absolutamente geniais.
Quase todos começaram tocando em Igrejas Evangélicas; alguns fizeram faculdade, Souza Lima, USP, Santa Marcelina, ou Tom Jobim EMESP, por onde eu também passei. Já os percussionistas são de Salvador, formados musicalmente no Candomblé mas também muito versáteis e criativos. Gabi Guedes nasceu no terreiro do Gantois e encabeça a percussão da Orkestra Rumpilezz. Já os músicos da “cozinha” (piano, baixo, bateria) têm formação jazzística mas já vem de uma geração pós-hip hop, portanto pouco comprometida com purismos. A ‘liga’ entre essa maneira de tocar jazz e os toques dos atabaques baianos era algo que eu e Arto Lindsay, o produtor do disco, tínhamos como um dos fundamentos da sonoridade desse trabalho”.
A descontinuidade rítmica em temas de O Corpo de Dentro, as quebras na seção percussiva provocando um vazio (Ímã), parecem um buraco proposital que de fato têm fundamento: “O disco Alegria de Wayne Shorter me influenciou muito, tem essas quebras, uma cutucada na cintura que tira você do chão, eu adoro isso. Com Wayne aprendi como desenvolver tensão, pensar na topografia do arranjo e, como compositor, indicar como vai ser o percurso para levar quem está escutando, querendo engajá-lo, seduzi-lo. Acho que essas quebras têm a ver com isso”.
A partir de seus contatos com Letieres Leite, líder da Orkestra Rumpilezz, Lourenço encontrou “esses tesouros da nossa música, ritmos que pouco saem do âmbito do Candomblé, como o vassi, opanijé, aguerê, barravento.
São coisas riquíssimas, complexas, polirrítmicas, especialmente com o Rum, o tambor mais grave, sempre quebrando, tocando percussão de uma maneira extraordinariamente melódica. Tudo isso era familiar pra mim, que sou também de família baiana e sempre estive muito conectado com essa música, mas credito a Letieres essa maneira ‘composicional’ de enxergar esses ritmos. Acho que ele me influenciou mesmo e me mudou muito. Quando o ouvi pela primeira vez, fui bater na porta dele dizendo que queria fazer qualquer coisa, ser copista, carregar mala, eu queria ficar perto dele, entender o que era isso, uma coisa super familiar mas totalmente diferente. Minha música também faz um esforço de pegar esses ritmos, essas claves e utilizá-los como fonte musical para composições originais; não estou tocando as canções rituais do Candomblé, mas partindo desses toques ancestrais para compor uma música original, contemporânea. Tem a ver com a percussão estar em outro lugar, mais à frente, noutro patamar; não é secundária, não é submissa, tem identidade própria.”
Eis Lourenço Rebetez, um jovem de 30 anos que aflora com seu corpo de dentro. Junta a riqueza rítmica da música brasileira com sopros do jazz. Com sua turma, ele provoca quem sabe ouvir música. E como está faltando saber ouvir música nesta terra…
Zuza Homem de Mello