O CORPO DE DENTRO

O primeiro disco do guitarrista Lourenço Rebetez não é de um guitarrista. Sua cabeça é de arranjador, é diferente. Pouco importa saber que o instrumento de Quincy Jones era o trompete, de Nelson Riddle o trombone, e que Chiquinho de Moraes era pianista. O instrumento de Lourenço é o mesmo, a caneta.

Lourenço tem cabeça de compositor. Na sua criação usa a cabeça e o ouvido interno, expressão que o maestro Heitor Villa-Lobos empregou quando lhe perguntei como conseguia compor alheio à zoeira da feijoada em seu apartamento com vista para o Central Park. A caneta e o ouvido interno são os instrumentos de Lourenço Rebetez em seu CD de estreia, chamado não fortuitamente de O Corpo de Dentro.

Não é preciso ouvir muito para perceber que seu processo criativo foge completamente ao convencional. Em sua cabeça, a composição já nasce com a orquestração, é um processo simultâneo nas duas atividades distintas, ordenadas na cronologia instituída: primeiro compor, segundo orquestrar. Nele, as duas se misturam, nascem juntas. Para esse jovem guitarrista que estudou em São Paulo e cursou a Berklee College of Music de Boston, onde se formou em composição de jazz, um motivo apenas rabiscado em papel, um mero fragmento melódico, induz a um caminho que, guiado por seu ouvido interno, vai sendo processado numa orquestração.

A música de Lourenço não procede de uma narrativa; ela tem uma textura sonora de módulos soltos que vão e voltam (Sombrero), ou vão e não voltam mais. São como temas independentes que se sucedem, dependurados sob o mesmo título, criando climas abertos para dar liberdade de improvisação aos solistas participantes. Acontece em Ozu.

Na sua concepção, Lourenço não adota o sistema de exposição de um tema seguido de solos individuais baseados na harmonia da composição. Inspirado pelas partituras de Moacir Santos, Gil Evans e Charles Mingus, que estudou a fundo, ele se apaixonou por esse modelo em que a orquestração é a composição.

Não é raro Lourenço subverter o método tradicional em que instrumentos mais agudos são posicionados no alto do acorde e os mais graves, no fundo. Como Duke Ellington fez em Mood Indigo em 1930 ao deslocar a clarineta como voz grave e o trombone como aguda, ele também gosta de criar inversões, dispondo, por exemplo, um trombone no meio de dois saxofones tenores em vez de colocá-lo na posição inferior do acorde. Assim manobrando, constituem-se timbres diferentes do habitual.

“O grande ensinamento de Duke Ellington é arranjar a harmonia dos sopros de uma maneira linear, horizontal. Cada instrumento não atua só como suporte para a melodia principal, ao contrário, tem sua identidade melódica própria. Assim as vozes do meio aparecem e cada instrumentista toca de uma forma diferente, com personalidade, mesmo quando não está tocando o lead. A harmonia vira esse tecido de diversas melodias, ao invés de uma voz principal e os outros indo atrás. O que eu faço não é muito diferente”, explica.

Além dos sete temas, Lourenço incluiu uma abertura e dois interlúdios que separam grupos de composições. “Os interlúdios não são composições que se desenvolvem, são aforismos, ideias, uma sugestão”, acrescenta Lourenço, que dá a seus temas títulos mais ou menos aleatórios, cuja sonoridade tem uma relação intuitiva com a estética das suas composições: Birjand e a lírica Punjab.

Pontieva, nome de uma orquídea, também. Nesta, Lourenço tem uma participação mais efetiva à guitarra. No disco, porém, preferiu mostrar suas composições com os módulos girando e reaparecendo seguidamente pois assim, pode-se perceber, funcionam como um pedal. “Essa coisa do pedal eu aprendi ouvindo o Wayne Shorter”, revela sobre a questão, justificando que “o pedal é uma coisa estática mas com o restante que vai mudando, provoca uma energia”.

“Um compositor de jazz”, comenta, “lida necessariamente com o improviso e com a individualidade de quem está tocando a partitura. Senão, seria compositor de música clássica. A graça, como em Mingus ou na Maria Schneider, é equilibrar os momentos de dar liberdade aos músicos improvisarem e os momentos de retomar o controle como compositor. Não quero uma gravação engessada, quero que eles toquem à vontade, sem medo.”

É o que também chama a atenção no CD de Lourenço. Atrás de cada um desses nomes pouco conhecidos está um músico tocando à vontade diante de uma partitura. Ultimamente, tenho sentido a considerável evolução dos músicos brasileiros a ponto dos instrumentistas levarem vantagem sobre os mais recentes cantores, compositores e até letristas. Minha curiosidade em confirmar se a razão para isso está na escolaridade é satisfeita quando Lourenço esclarece quem toca neste CD: “Os músicos dos sopros são da minha geração, tocam por aí, são de São Paulo, amigos meus. Esse pessoal toca em big bands, alguns com cantores ou em musicais, fazem música instrumental, são muito preparados, alguns absolutamente geniais.

Quase todos começaram tocando em Igrejas Evangélicas; alguns fizeram faculdade, Souza Lima, USP, Santa Marcelina, ou Tom Jobim EMESP, por onde eu também passei. Já os percussionistas são de Salvador, formados musicalmente no Candomblé mas também muito versáteis e criativos. Gabi Guedes nasceu no terreiro do Gantois e encabeça a percussão da Orkestra Rumpilezz. Já os músicos da “cozinha” (piano, baixo, bateria) têm formação jazzística mas já vem de uma geração pós-hip hop, portanto pouco comprometida com purismos. A ‘liga’ entre essa maneira de tocar jazz e os toques dos atabaques baianos era algo que eu e Arto Lindsay, o produtor do disco, tínhamos como um dos fundamentos da sonoridade desse trabalho”.

A descontinuidade rítmica em temas de O Corpo de Dentro, as quebras na seção percussiva provocando um vazio (Ímã), parecem um buraco proposital que de fato têm fundamento: “O disco Alegria de Wayne Shorter me influenciou muito, tem essas quebras, uma cutucada na cintura que tira você do chão, eu adoro isso. Com Wayne aprendi como desenvolver tensão, pensar na topografia do arranjo e, como compositor, indicar como vai ser o percurso para levar quem está escutando, querendo engajá-lo, seduzi-lo. Acho que essas quebras têm a ver com isso”.

A partir de seus contatos com Letieres Leite, líder da Orkestra Rumpilezz, Lourenço encontrou “esses tesouros da nossa música, ritmos que pouco saem do âmbito do Candomblé, como o vassi, opanijé, aguerê, barravento.

São coisas riquíssimas, complexas, polirrítmicas, especialmente com o Rum, o tambor mais grave, sempre quebrando, tocando percussão de uma maneira extraordinariamente melódica. Tudo isso era familiar pra mim, que sou também de família baiana e sempre estive muito conectado com essa música, mas credito a Letieres essa maneira ‘composicional’ de enxergar esses ritmos. Acho que ele me influenciou mesmo e me mudou muito. Quando o ouvi pela primeira vez, fui bater na porta dele dizendo que queria fazer qualquer coisa, ser copista, carregar mala, eu queria ficar perto dele, entender o que era isso, uma coisa super familiar mas totalmente diferente. Minha música também faz um esforço de pegar esses ritmos, essas claves e utilizá-los como fonte musical para composições originais; não estou tocando as canções rituais do Candomblé, mas partindo desses toques ancestrais para compor uma música original, contemporânea. Tem a ver com a percussão estar em outro lugar, mais à frente, noutro patamar; não é secundária, não é submissa, tem identidade própria.”

Eis Lourenço Rebetez, um jovem de 30 anos que aflora com seu corpo de dentro. Junta a riqueza rítmica da música brasileira com sopros do jazz. Com sua turma, ele provoca quem sabe ouvir música. E como está faltando saber ouvir música nesta terra…

Zuza Homem de Mello

CRÍTICAS/RESENHAS

Julio Maria
O Estado de São Paulo | Caderno 2

O afrojazz libertário de Lourenço Rebetez Ao lado de 12 instrumentistas, músico mostra neste sábado, dia 20, em São Paulo, repertório de temas instrumentais que o apontam como um grande criador O guitarrista Lourenço Rebetez lança neste sábado, 20, seu primeiro disco solo, O Corpo de Dentro, no Itaú Cultural. Um álbum bem cuidado, instrumental, […]

O afrojazz libertário de Lourenço Rebetez

Ao lado de 12 instrumentistas, músico mostra neste sábado, dia 20, em São Paulo, repertório de temas instrumentais que o apontam como um grande criador

O guitarrista Lourenço Rebetez lança neste sábado, 20, seu primeiro disco solo, O Corpo de Dentro, no Itaú Cultural. Um álbum bem cuidado, instrumental, com 12 músicos executando seus temas e arranjos. A notícia, dita assim, pode dar falsas pistas. Há pouca guitarra nas faixas, indicando que a matriz criativa de Rebetez não está no instrumento que ele toca. Ao criar sem a guitarra no colo, ele muda completamente o eixo de seu pensamento e entrega sua música para os ventos de uma liberdade idiomática degustada por criadores sem fronteira. Quem aponta os caminhos não é a linguagem de um único instrumento, mas a carga cultural que as experiências de Rebetez fazem acumular.

Ao que as matérias já publicadas indicam, e um texto de apresentação monumental assinado pelo pesquisador Zuza Homem de Mello faz crer, as expectativas sobre esse jovem de 30 anos podem estar criando, à sua revelia, um momento de euforia sobre o frescor, mais conhecido como hype. Seria a glória se um músico instrumental de alto calibre, como Rebetez e os profissionais que o acompanham, atingisse esse status, mais comum a outros universos musicais. Hypes soam vanguarda, são seguidos por fãs ávidos e ganham espaços extras na mídia. Muitos não justificam no palco o fenômeno que os atinge fora dele, o que não seria o caso de Rebetez.

Quando passa pelas esteiras classificatórias, sua música ganha o selo de afrojazz com naturalidade. O nome não o desagrada. “Gosto, soa bonito”, diz. Ozu, o segundo tema do disco, dá todas as letras. Sopros de Moacir Santos no terreiro de Letieres Leite evocando os espíritos de Wayne Shorter. Birjand é saudada por afoxés antes da entrega ao imprevisível de um piano livre, sopros em camadas bem estudadas e bateria nervosa. É leve mas há impacto. Arto Lindsay assina a produção e a ficha técnica traz músicos talentosos.

 Filho de pai soteropolitano e mãe carioca, mas de berço também baiano, Lourenço é de São Paulo e faz seu caminho entre bons artistas. Estudou na renomada Berklee College of Music, de Boston, e passou uma temporada colado na sombra de Letieres Leite para descobrir como aquela mente funciona. A formação que levará ao Itaú é a mesma do disco: seis sopros, três percussões, um trio de jazz e ele. Em tempos de enxugamento de grandes máquinas, que passaram a se apresentar em solos ou duos para conter gastos, Lourenço quer seu som grande. Um luxo necessário, mas cada vez mais raro. A reportagem pergunta se não passou pela cabeça batizar sua big band como fez Proveta com a Mantiqueira ou o próprio Letieres com a Orkestra Rumpilezz. “Engraçado, pensei sim. Mas ainda não fiz.” Bom sinal. Lourenço está mais preocupado em fazer música.

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Silvio Essinger
O Globo

Crítica: Álbum de estreia de Lourenço Rebetez é música viva Músico avança léguas por passo em “O corpo de dentro” RIO — Lourenço Rebetez é um fantástico guitarrista, daqueles que juntam técnica, velocidade, timbre e bom gosto num só pacote. Mas isso é o que menos importa em “O corpo de dentro”. No álbum de […]

Crítica: Álbum de estreia de Lourenço Rebetez é música viva

Músico avança léguas por passo em “O corpo de dentro”

RIO — Lourenço Rebetez é um fantástico guitarrista, daqueles que juntam técnica, velocidade, timbre e bom gosto num só pacote. Mas isso é o que menos importa em “O corpo de dentro”.

No álbum de estreia do músico, o instrumento é apenas uma voz eventual entre outras várias — percussões, sopros, cordas — numa conversa de alto nível, na qual se desfazem as fronteiras entre composição e arranjo. E, mais do que tudo até, tem-se ali uma amostra de música viva, alegre, que se alimenta da surpresa, da interpretação de ideias realmente novas por um grupo destemido de músicos.

A influência de Moacir Santos e Letieres Leite, associada a um fino arcabouço jazzístico (e à produção livre, criativa de Arto Lindsay), dá as condições para que Lourenço avance léguas por passo. Seu afro-jazz brasileiro/internacional não tem correspondentes — ele está, em suas batidas quebradas e no uso nada ortodoxo das eletrônicas, mais próximo de um experimentalista do hip-hop como DJ Shadow ou Flying Lotus do que de qualquer outro músico de partitura.

A tradição, em “O corpo de dentro”, é uma ideia vaga. Os instrumentos estão muitas vezes deslocados de suas funções, melodias se cruzam e fazem desenhos extravagantes, mas cada tema é, em si, um organismo que nasce, cresce e se desenvolve.

No caldeirão, há faixas mais estruturadas harmonicamente, como “Pontieva”; outras mais free, como “Ozu”; e belezas puras como “Punjab” e “Sombrero”. Nenhuma delas melhor do que as outras — todas nascem da mesma felicidade no encontro com a música em estado puro.Cotação: Ótimo

Infoglobo
Roger Lerina
Zero Hora | Segundo Caderno

Uma música em que todos são protagonistas Lourenço Rebetez estreia em disco com o ótimo “O Corpo de Dentro” A notável estreia em disco do guitarrista Lourenço Rebetez não se parece em nada com a de um vir-tuoso do instrumento. Em O corpo de dentro, o paulistano de 30 anos até toca em metade das […]

Uma música em que todos são protagonistas

Lourenço Rebetez estreia em disco com o ótimo “O Corpo de Dentro”

A notável estreia em disco do guitarrista Lourenço Rebetez não se parece em nada com a de um vir-tuoso do instrumento. Em O corpo de dentro, o paulistano de 30 anos até toca em metade das faixas – mas o interesse do músico é mesmo mostrar seu talento como compositor e arranjador, dono de uma capacidade singular para colocar em harmonia sopros, percussão e acompanhamentos no primeiro plano. O resultado é uma sonoridade densa e complexa, em que todos os instrumentos assumem o protagonismo musical ao mesmo tempo, sem destaques individuais sobrepondo-se ao todo.

– Primeiro eu componho, depois penso se tem espaço para a guitarra. Componho no piano. Meu interesse é fazer a composição e o arranjo juntos – explica Rebetez em entrevista a Zero Hora por telefone.

Segundo o instrumentista, o excelente álbum recém-lançado começou a surgir em 2009, quando retornou ao Brasil depois de três anos de estudos intensos nos Estados Unidos, na prestigiadíssima Berklee College of Music de Boston, onde se formou em composição de jazz. Influenciado pelo estilo de escrita para conjuntos musicais de ícones jazzísticos como Duke Ellington, Gil Evans, Maria Schneider e Charles Mingus, em que os temas centrais e os solos fazem parte do mesmo tecido harmônico, o guitarrista encontrou a embocadura certa para seu trabalho quando conheceu a música do compositor e arranjador baiano Letieres Leite, criador da pulsante Orkestra Rumpilezz.

– Comecei a pesquisar os toques afro-brasileiros que são menos conhecidos, como vassi, opanijé, aguerê e barravento. Fiquei completamente louco quando ouvi o Letieres Leite e a orquestra dele,estudei com ele. Gosto muito do som dos atabaques do candomblé, especialmente o rum, o tambor mas grave, que quebra o ritmo e é tocado de uma maneira melódica. No disco, a percussão forma um naipe como os metais, não é decorativa – diz Rebetez, lembrando que ele próprio tem ascendência baiana.

Em O corpo de dentro, o autor reuniu um eclético grupo de músicos jovens como ele: nos sopros, amigos que tocam em São Paulo em big bands ou acompanhando cantores em musicais, quase todos com formação em bandas de igrejas evangélicas ou em faculdades de música; nas percussões, instrumentistas de Salvador egressos dos terreiros de candomblé. A produção é de Arto Lindsay, músico americano que já traba- lhou com nomes como Caetano Veloso, Da- vid Byrne, Marisa Monte, Laurie Anderson, Marc Ribot, Bill Frisell e Arnaldo Antunes.

– Achava que seria legal ter um produtor experiente. Conhecia o Arto de encarte, de ver o nome dele em discos que eu gosto. O Arto tem um background completamente oposto ao meu. Eu não queria fazer um disco de jazz purista, queria alguém que trouxesse coisas para além do universo hi-fi do jazz. Ele se entusiasmou pelo projeto. Apesar da nossa formação oposta, temos muitas afinidades. Arto dizia que ele era o antimúsico e eu era o supermúsico – resume o brasileiro.

Os 10 temas do álbum foram batizados com nomes ilustrativos, como Ozu (referência ao cineasta japonês Yasujiro Ozu) e Sombrero.

– Os títulos são imagéticos, remetem a sugestões visuais, a atmosferas. Birjand é uma cidade do Irã e remete a Isfahan, música de Duke Ellington que também é o nome de outra cidade daquele país. Ímã tem a ver com os dois polos rítmicos desse tema. Pontieva é o nome de uma orquídea.

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Thales de Menezes
Folha de São Paulo | Ilustrada

Tudo junto e misturado Lourenço Rebetez compõe jazz instrumental, criando melodias e arranjos ao mesmo tempo, comandando até 13 músicos nas faixas de seu surpreendente álbum de estreia “O Corpo de Dentro” é singular. Álbum de estreia do guitarrista e compositor paulistano Lourenço Rebetez, 30, soa diferente de qualquer projeto musical brasileiro dos últimos anos. […]

Tudo junto e misturado

Lourenço Rebetez compõe jazz instrumental, criando melodias e arranjos ao mesmo tempo, comandando até 13 músicos nas faixas de seu surpreendente álbum de estreia

“O Corpo de Dentro” é singular. Álbum de estreia do guitarrista e compositor paulistano Lourenço Rebetez, 30, soa diferente de qualquer projeto musical brasileiro dos últimos anos. Diferente, neste caso, quer dizer ambicioso, ousado e envolvente.

Explicando: quando um músico compõe, quase sempre escreve uma linha melódica para ser tocada em um instrumento. Por exemplo, piano ou violão. Depois, ele -ou outra pessoa- faz o arranjo, acrescentando percussão, sopros, coro etc. É como colocar penduricalhos em uma estrutura já existente.

Lourenço Rebetez faz diferente. Ele compõe tudo ao mesmo tempo. A música já é criada para ser tocada com guitarra, piano, baixo, bateria, sopros (sax, trombone, trompete etc.) e percussão.

Em entrevista à Folha, ele lembra o período em que estudou música em Berklee, em Boston (EUA), onde se formou em composição de jazz. Fala de um professor que pegava uma partitura de Duke Ellington (1899-1974) e queria que os alunos respondessem se aquilo era arranjo ou composição.

“Eu nunca tinha me perguntado isso. Aí entendi o que ele chamava de composição. Não é um tema, apenas melodia e acordes que depois você orquestra. Isso é legal também, tem gente que faz muito bem, mas há outro jeito de compor que você não tem como reduzir a só uma linha melódica. A orquestração faz parte da música.”

ORQUESTRA

Há uma densidade nas dez faixas de “O Corpo de Dentro”. Um disco de jazz instrumental no qual novos detalhes vão aparecendo a cada audição. Uma música como “Birjand”, por exemplo, foi gravada por 13 instrumentistas, uma pequena orquestra com todo mundo efetivamente tocando de forma plena. Nada ali é decorativo.

“Esse procedimento de composição contribui para isso, ter essa densidade, não se esgotar na primeira audição”, diz Rebetez. “Outras pessoas compõem dessa maneira, não sou só eu. Me inspiro nelas. Nada de gravar a base e depois dizer para o percussionista ‘preenche aí’, sabe?”

Entre essas inspirações está o maestro e arranjador brasileiro Moacir Santos (1926-2006). “Sabe essas pessoas que falam de algo transcendental quando escutaram João Gilberto? Tenho isso com Moacir Santos, lembro exatamente onde estava na primeira vez em que ouvi, na casa de um amigo.”

Santos fez Rebetez se interessar pela composição para sopros. “Eu me aproximei de uma música brasileira que não era samba ou baião, essas coisas que a gente tem incorporadas à MPB.”

CEREBRAL

“O Corpo de Dentro” é intrincado, há um aspecto cerebral evidente nas músicas. “Tem pessoas que são intuitivamente grandes compositores de canções, mas arranjo de orquestração é difícil. Não tem jeito, você tem de estudar”, diz o músico.

“Eu me tornei músico para poder estudar todo dia. Se tivesse uma outra profissão teria menos tempo para isso.”

Ele toca desde adolescente. Chegou a cursar dois anos de história na USP, mas já tocava na noite. Em Berklee, para muitos a mais prestigiosa escola de música no planeta, ele se viu com gente do mundo inteiro, “todos muito sérios”. Por lá ele encontrou outras grandes influências, como o pianista canadense Gil Evans (1912-1988) e a compositora e “bandleader” americana Maria Schneider, 55, que também misturam composições com arranjos.

Rebetez diz que a música erudita também contribuiu para seu processo, mas o jazz foi a atração mais forte. “O jazz tem esse nível de seriedade, essa dedicação dos músicos que é uma devoção. John Coltrane começou muito com isso. Todo mundo fala que ele voltava de um show e ia estudar durante horas.”

Quando voltou ao Brasil, em 2009, Rebetez fez uma temporada no Centro Cultural Rio Verde, em São Paulo. Algumas músicas do disco foram escritas nessa época. Outras, no entanto, foram terminadas já no estúdio. As gravações, feitas neste ano com produção do americano Arto Lindsay, duraram só dez dias.

PERSONALIDADE

“Primeiro disco tem isso de você acumular coisas de vários anos, e meu caso foi assim. O tempo foi passando e fui ganhando coragem para fazer um disco com personalidade. Acho que consegui, tenha saído bom ou ruim.”

Ele e Arto já tinham se cruzado em casas de amigos. Produtor “quase brasileiro” de Marisa Monte e Caetano Veloso, ele foi, segundo Rebetez, “um comparsa”.

“Tem várias decisões que precisam ser tomadas num estúdio que a gente tomava junto. Desde escolher o microfone para cada instrumento até a logística de gravação de uma banda tão grande. Ele me ajudou a ter confiança nas ideias que eu já tinha.”

Rebetez quer fazer um show de lançamento com a formação completa: três percussionistas, seis sopros, trio de jazz e ele. Marcou para o dia 20 de agosto, em São Paulo, no Itaú Cultural. “É um show que não dá para tocar toda semana, viajar com tanta gente. Não tem muita pirotecnia, mas, definitivamente, será com banda grande.”

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Marcos Grinspum Ferraz
Revista Brasileiros

Estreia madura Arranjador, orquestrador e guitarrista paulistano, Lourenço Rebetez lança “O Corpo de Dentro”, um diálogo entre o jazz, ritmos afro-brasileiros e gêneros contemporâneos Com os avanços tecnológicos que permitem tanto a realização de gravações baratas, com rapidez e qualidade, quanto uma distribuição mais democrática de música na internet, lançar álbuns tornou-se uma tarefa relativamente […]

Estreia madura

Arranjador, orquestrador e guitarrista paulistano, Lourenço Rebetez lança “O Corpo de Dentro”, um diálogo entre o jazz, ritmos afro-brasileiros e gêneros contemporâneos

Com os avanços tecnológicos que permitem tanto a realização de gravações baratas, com rapidez e qualidade, quanto uma distribuição mais democrática de música na internet, lançar álbuns tornou-se uma tarefa relativamente fácil. Diariamente artistas colocam no mundo seus trabalhos, e quanto a isso só temos a celebrar. Mas talvez por este fato, também, poucos discos de estreia soam tão maduros e bem-acabados quanto O Corpo de Dentro, do músico paulistano Lourenço Rebetez, 30 anos. E não é por acaso. Formado em guitarra e composição de Jazz pela Berklee College of Music (EUA) e atuante na cena musical há quase dez anos, Rebetez usou o tempo de estrada para pensar com calma o que queria apresentar quando fosse a hora. “Desde 2009 eu desenvolvia meu trabalho autoral e amigos me estimulavam a gravar. Mas tomei a decisão de esperar um pouco até ter a certeza de que eu tinha as condições de fazer o disco exatamente como queria”, explica.

Para revelar ao mundo seu “corpo de dentro” – todas as composições e arranjos são de Rebetez –, o autor convidou um time de talentosos músicos jovens (oito sopros, piano, bateria e baixo), além de um trio de percussionistas encabeçados pelo baiano Gabi Guedes, da Orquestra Rumbilezz. Completou o grupo com o eclético e experimental produtor musical Arto Lindsay – americano que trabalhou com Caetano Veloso e David Byrne – e gravou no novo e equipado estúdio da Red Bull, em São Paulo. O resultado é um disco instrumental que, a partir de uma base sólida no jazz, dialoga com gêneros brasileiros – especialmente os toques de percussão de origem afro – e, de modo mais sutil, com levadas que vão do eletrônico ao rap.

O Corpo de Dentro não é um disco purista, explica Rebetez ao ser perguntado sobre as influências de mestres como Gil Evans, Duke Ellington e Charles Mingus, ou dos brasileiros Moacir Santos e Letieres Leite. “Por mais que eu ame os mestres, não teria cabimento tentar mimetizar a música deles. Meu tempo é outro e minhas vivências também. Na minha música, tenho que ser sincero com quem sou, com o que é verdadeiro para mim. Paradoxalmente, acho que seria uma espécie de desrespeito à tradição ser muito fiel a ela. Seja o jazz, seja o candomblé, quero respeitosamente me inspirar nas linguagens, mas não imitar o que as pessoas que efetivamente fazem parte dessas tradições fizeram.”

Rebetez diz ainda que, em sua estreia, optou por se apresentar mais como compositor do que como instrumentista – o guitarrista só toca em metade do álbum. Ele conta, inclusive, que é principalmente com a caneta na mão que ele dá forma a seus temas e arranjos. “Só componho na cabeça e no piano que, aliás, toco mal. De certa maneira, acho que não usar um instrumento que a gente domina para compor ajuda a evitar certos vícios ou maneirismos. Nesse sentido, sempre foi mais orgânico me afastar da guitarra para compor, porque me facilita buscar traduzir a música que está na minha imaginação, não aquela que já está ‘debaixo do dedo’”.  A música que está, pode-se dizer, em seu corpo de dentro.

Gabriel Serravale
Jornal A Tarde, Salvador - Bahia

Lourenço Rebetez mistura jazz e candomblé no primeiro álbum O músico paulista Lourenço Rebetez se apaixonou pelo jazz desde a adolescência. No mesmo período, entre as idas e vindas à Bahia, desenvolveu um particular interesse pelo som percussivo dos rituais de candomblé e dos blocos afro. Hoje, maduro e formado em guitarra e jazz composition […]

Lourenço Rebetez mistura jazz e candomblé no primeiro álbum

O músico paulista Lourenço Rebetez se apaixonou pelo jazz desde a adolescência. No mesmo período, entre as idas e vindas à Bahia, desenvolveu um particular interesse pelo som percussivo dos rituais de candomblé e dos blocos afro. Hoje, maduro e formado em guitarra e jazz composition pela Berklee College of Music (Boston), ele reúne essas duas referências musicais no recém- -lançado álbum de estreia O Corpo de Dentro.

“Esse disco é o resultado de um trabalho que eu comecei a desenvolver por volta de 2009. Depois que passei um período estudando música nos Estados Unidos, eu voltei para o Brasil e, além de tocar com várias pessoas e compor trilhas, eu comecei a escrever alguns desses temas que agora estão no CD”, conta o músico e compositor.

Para lançar o primeiro trabalho, Lourenço contou com a colaboração de um nome de peso. O renomado guitarrista norte-americano Arto Lindsay, que já produziu discos de nomes como Caetano Veloso e Marisa Monte, assina a produção do álbum.

“Eu estava fazendo o meu primeiro disco da carreira e  queria muito ter um produtor que já tivesse feito vários, que é o caso dele. E eu achei que ele entenderia a minha ideia de misturar coisas que me formaram como músico e não faria algo tão purista”, justifica a escolha.

A parceria resulta em um trabalho bem apurado, baseado em muito estudo e pesquisa. As dez faixas  instrumentais que Lourenço inclui no CD são marcadas por uma sonoridade complexa e, ao mesmo tempo, instigante, com uma mistura de sopros, piano, guitarra e a percussão afro-brasileira.

Rumpilezz

Boa parte da inspiração de Lourenço Rebetez para compor as músicas de O Corpo de Dentro vem da Bahia, mais precisamente da Orkestra Rumpilezz, pioneira em juntar o som do candomblé com o jazz.

“Quando eu vi o show da Rumpilezz pela primeira vez, em 2009 ou 2010, eu fiquei completamente maluco com o que ouvi. Naquele verão mesmo eu fui para Salvador bater na porta do [maestro] Letieres Leite para tomar aula”, lembra o músico.

O maestro e músico baiano, aliás, teve influência fundamental sobre Lourenço na hora de conceber o novo trabalho. “Foi o Letieres quem me abriu o olhar para entender que esses ritmos todos poderiam servir de matéria prima de uma criação moderna e contemporânea”, ressalta.

No disco de estreia, a Bahia é representada nas gravações pelas presenças dos percussionistas baianos Gabi Guedes, Iuri Passos e Ícaro Sá.

link para a matéria: http://atarde.uol.com.br/cultura/noticias/1780375-lourenco-rebetez-mistura-jazz-e-candomble-no-primeiro-album

Tárik de Souza
Revista Carta Capital

Os arabescos líricos de Lourenço Rebetez Um tecido de diversas melodias no álbum “O Corpo de Dentro”   Embora também reconhecido como pianista, o instrumento do jazzista Duke Ellington (1899-1974) era a orquestra. Ele compunha pensando no desempenho de cada músico, e como estes sons se organizariam numa polifonia, quase nunca simétrica. No Brasil, pode-se […]

Os arabescos líricos de Lourenço Rebetez

Um tecido de diversas melodias no álbum “O Corpo de Dentro”

 

Embora também reconhecido como pianista, o instrumento do jazzista Duke Ellington (1899-1974) era a orquestra. Ele compunha pensando no desempenho de cada músico, e como estes sons se organizariam numa polifonia, quase nunca simétrica.

No Brasil, pode-se creditar procedimento semelhante a maestros de caligrafia autoral acendrada como Tom Jobim e Moacir Santos. Dentro dessa proposta estética, o guitarrista paulista Lourenço Rebetez estreia a bordo do estruturalista O Corpo de Dentro, produção de outro guitarrista, o vanguardista americano Arto Lindsay. 

Formado em composição de jazz na escola Berklee, em Boston, nos EUA, Lourenço evoca Ellington em entrevista ao historiador Zuza Homem de Mello, no texto de apresentação. “Cada instrumento não atua só como suporte para a melodia principal, tem identidade melódica própria.” E transpira Moacir Santos logo no contraplano de sopros e percussão da faixa Imã.

Esgrimindo a harmonia como “um tecido de diversas melodias”, ao evitar a habitual exposição do tema seguida de solos, Lourenço erige módulos semoventes (Sombrero) ou cerze nas cordas universos de naipes paralelos (Ozu). No seu painel de influências do jazz também cintilam o muralista Gil Evans, eleito de Miles Davis, e “o desenvolvimento de tensão, a topografia do arranjo”, do saxofonista Wayne Shorter. 

Mas, sobretudo, sua sintaxe apoia-se nos ritmos do candomblé, aguerê, barravento, vassi, opanijé (Interlúdio), lições do baiano Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz.  Do confronto de tessituras do elucidativo O Avesso das Coisas, da Abertura, a alternância de climas conduzida pelos líricos arabescos do guitarrista em Pontieva, assolada por rufos de bateria, o disco de Lourenço não se exaure na linearidade. Abre-se a novas interpretações a cada audição. 

Leia a matéria original aqui.

Antônio Carlos Miguel
G1 MUSICA

Também não para de chegar material sonoro. Mesmo com o feriado no meio, foi semana cheia, com pelo menos um título fora de série. Daqueles que compensam a rotina de Sísifo que escolhi como função nessa colunadesabafosentimusical. Como já vem virando regra, é mais um disco instrumental, e de um músico que nunca ouvira falar […]

Também não para de chegar material sonoro. Mesmo com o feriado no meio, foi semana cheia, com pelo menos um título fora de série. Daqueles que compensam a rotina de Sísifo que escolhi como função nessa colunadesabafosentimusical. Como já vem virando regra, é mais um disco instrumental, e de um músico que nunca ouvira falar antes, o paulistano Lourenço Rebetez, em produção assinado pelo mais que conhecido Arto Lindsay. Este, fora de sua zona habitual no Brasil, onde tem atuado mais entre o pop e a MPB. Também guitarrista, em “O Corpo de Dentro” (Dueto/Red Bull Studios),
Lourenço Rebetez, de 30 anos, é principalmente o compositor e o arranjador dos dez temas. Como paralelo para facilitar a tradução em texto dos sons organizados, Moacir Santos é uma referência evidente, assim como, por tabela, igualmente influenciado pelas coisas do afro-pernambucaliforniano, algo da formação e da sonoridade da Orkestra Rumpilezz do baiano Letieres Leite. Ainda entre os
arranjadores, outra inspiração é Gil Evans, de quem, por sinal, Rebetez citou um trecho de “Solea” em “Interlúdio 1 (Opanijé)”. Ou por fim e também por tabela, o saxofonista John Zorn, com quem Lindsay
já trabalhou. Naipes de percussão e sopros são os protagonistas, mas a instrumentação de “O corpo de dentro” também inclui bateria, baixo, piano e guitarra – esta, apenas em quatro das dez faixas, sendo que o compositor/arranjador tem uma quinta participação como instrumentista na programação eletrônica de “Interlúdio 2 (Supernova)”. Quando aparece, a guitarra de Rebetez diz a que veio, tanto contribuindo para o desenvolvimento do tema quanto para comentários, digressões, em fluentes e certeiros solos. É o que se ouve na introspectiva “Ozu” – esta, com sua tensão distendida pela entrada de um piano (Henrique Gomide) à la Clube da Esquina -; na mais “moacir-santos” do disco “Imã”; e na ritmada “Pontieva”, esta, a partir de um groove de samba-jazz, é a única sem os instrumentos de percussão do candomblé, apenas a (boa) bateria de Vitor Cabral. Música instrumental e para instrumentistas, Rebetez escreve e arranja prevendo improvisos, que se alternam através das composições nas mãos (e bocas, pulmões) de, entre outros, Bruno Belasco (flugelhorn e trompete), Raphael Ferreira (sax tenor), Cássio Ferreira (sax soprano), Jorginho Neto (trombone tenor). É título que após a CDesovada continuará rodando, será ripado…

Redbull Studios
((entrevista))

Você fala de uma liga entre uma maneira de tocar jazz mais quebrada com a percussão afro-brasileira, o “toque dos atabaques baianos”. Como foi seu caminho musical por essas vertentes da música instrumental, quando essa conexão entre elas se tornou mais visível pra você e como isso guiou a produção desse álbum? Meu fascínio pelo […]

Você fala de uma liga entre uma maneira de tocar jazz mais quebrada com a percussão afro-brasileira, o “toque dos atabaques baianos”. Como foi seu caminho musical por essas vertentes da música instrumental, quando essa conexão entre elas se tornou mais visível pra você e como isso guiou a produção desse álbum?

Meu fascínio pelo jazz vem da adolescência, e acho que foi principalmente sob a ótica desse gênero que me desenvolvi musicalmente. Me encantava a excelência dos jazzistas, a devoção que tinham pela prática instrumental e a potência que um grupo de músicos podia criar espontaneamente numa noite inspirada.

Mas ao mesmo tempo, essa paixão nunca veio em detrimento de outros interesses musicais. Eu provavelmente ouvi “A Love Supreme” (John Coltrane) tanto quanto “Voodoo” (D’Angelo), “Outras Palavras” (Caetano Veloso), “Coisas” (Moacir Santos) ou “Alfagamabetizado” (Carlinhos Brown). Quer dizer, acho que essa “liga” que você diz, vem da genuína paixão por todos esses sons.

Por outro lado, no disco, isso foi feito de caso pensado, de certa maneira. Eu sabia que este disco seria um disco “jazz”, em linhas gerais, que as composições eram jazzísticas etc.. Daí, pra começar, ao invés de ter um jazzista como produtor musical, optei por convidar o Arto, um cara com um background aparentemente oposto ao meu. Uma amiga nossa, quando soube que ele iria produzir meu disco, disse: “mas o Arto não é o anti-jazz!?”. Ele na verdade adora jazz, mas de fato não seria a escolha óbvia. E por isso mesmo que eu quis convidá-lo e acho que foi por isso também que ele se entusiasmou em aceitar o convite. Nas nossas conversas de pré-produção, os assuntos eram intermináveis, porque amávamos não só Miles com Gil Evans, mas também assistir a saída do Ilê Aiyê do Curuzu no carnaval, e os discos do Kendrick Lamar. O que quero dizer é que era óbvio que iríamos querer experimentar misturas com todas essas coisas que amamos. Mas tudo isso poderia ser uma grande utopia, não fossem todas essas expressões umbilicalmente ligadas, evidentemente, por sua matriz na música negra, de origem africana.

Mas bem, em resumo, quando procurei Arto, eu já tinha a ideia de fazer um disco de composições autorais, fortemente percussivo, físico, de corpo, com timbaus, atabaques e surdos virados, ao lado de arranjos para sopros e uma maneira “pós-hip hop” de tocar jazz. A partir desse pressuposto, a participação dele foi importantíssima pra amadurecer isso tudo e sobretudo me dar confiança nas minhas idéias.

Você cita Letieres Leite como uma influência pra enxergar de forma composicional os ritmos, utilizando-os como fontes pra canções originais. Queria que você comentasse um pouco a importância da composição (e desse olhar) no seu processo.

Por ter ascendência baiana dos dois lados da família, e frequentar muito Salvador durante a infância e adolescência, sempre tive uma certa ambientação com o que Letieres chama de “universo percussivo baiano”. Inclui-se aí não só os ritmos que ao longo do tempo foram mais integrados pela mpb — o samba,  o samba reggae, e até mesmo o ijexá — mas também um riquíssimo acervo de ritmos ligados, por um lado, às danças rituais dos terreiros de candomblé e, por outro, aos blocos afro da Bahia. Bom, se eu já me encantava com eles há tempos, foi Letieres quem me abriu o olhar para como esses ritmos ancestrais poderiam servir como matéria prima para uma criação moderna, contemporânea, exuberante ritmicamente e intrinsecamente brasileira. A “melodia” do tambor mais grave pode virar uma linha de baixo. O timbre dos aguidavis estalando na pele do atabaque pode inspirar uma articulação do naipe de saxofones. A clave tocada pelo agogô pode guiar a divisão da melodia, e assim por diante.

Gabi Guedes, da Orkestra Rumpilezz, participa do disco. Como foi essa parceria, ele toca em todas as faixas?

Foi uma honra enorme ter Gabi gravando conosco. Tocou em nove das dez faixas. Ele chegou no projeto através de Arto, com quem já havia trabalhado junto muitas vezes. Gabi é um dos maiores percussionistas da Bahia, além de carregar consigo a ancestralidade de quem nasceu e se formou Ogã no Terreiro do Gantois de Mãe Menininha. Ou seja, é uma autoridade musical que eu respeito e reverencio imensamente. Mas além disso é uma pessoa iluminada, alto astral, de sorriso fácil e cabeça aberta, afim de compartilhar, criar junto, enfim… foi uma honra.  Digo isso dele e também dos outros dois percussionistas que participaram das gravações, Ícaro Sá e Iuri Passos, ambos geniais e também fundamentais no clima bom e nos grooves que rolaram nas gravações.

E quanto aos outros músicos, como a banda foi sendo formada?

Os músicos na maioria são da minha geração, amigos e colegas que admiro muito. A base da banda já havia sido formada uns seis meses antes da gravação, num show que fizemos ao lado do Chico Pinheiro Quarteto, abrindo para a baixista/cantora americana Esperanza Spalding. Naquela ocasião, juntei sopros (Maycon Mesquita, Bruno Belasco, Jaziel Gomes, Cássio Ferreira, Raphael Ferreira e Zafe Costa) e percussão (Vitor Cabral) ao quarteto do Chico, que já incluía o baixista Bruno Migotto, que acabou também gravando o disco. Enfim, ali achei que tínhamos juntado um time excelente, virtuoso e sensível. A partir daí comecei a pensar em quem poderia tirá-los da zona de conforto, rs. Comecei a conversar com Arto no primeiro semestre de 2015, como disse antes, já com uma boa ideia do que eu queria fazer.

Por fim, quando serão os shows do disco?

Estamos trabalhando para fazer um lançamento muito especial desse disco. É um pouco complexo porque precisamos de uma certa estrutura para fazer o show com a banda completa, que é o que queremos. Mas muito em breve teremos as datas agendadas.

Thiago Sobrinho
A Gazeta

Jazz com a pegada e o ritmo do Brasil Em seu primeiro disco, Lourenço Rebetez mescla o jazz com ritmos percussivos Mais do que compor um disco, Lourenço Rebetez queria que o primeiro álbum de sua carreira tivesse identidade. Para isso, o guitarrista, compositor e arranjador explorou caminhos que vão do jazz mais purista às […]

Jazz com a pegada e o ritmo do Brasil

Em seu primeiro disco, Lourenço Rebetez mescla o jazz com ritmos percussivos

Mais do que compor um disco, Lourenço Rebetez queria que o primeiro álbum de sua carreira tivesse identidade. Para isso, o guitarrista, compositor e arranjador explorou caminhos que vão do jazz mais purista às percussões milenares dos terreiros de Candomblé.

O resultado desse percurso é o recém lançado “O Corpo de Dentro”, trabalho do guitarrista de 30 anos que estudou na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) e se formou em composição de jazz na Berklee College of Music de Boston, nos Estados Unidos.

Apesar de ter a guitarra como instrumento, Lourenço não transformou seu álbum de estreia em um disco de guitarrista. Nem mesmo se deu o trabalho de entrar em estúdio a fim de explorar sons convencionais. “Misturar sons orgânicos e eletrônicos era uma coisa que tinha vontade de fazer”, confessa o músico.

 

“Também achei interessante ter no meu trabalho essa coisa da produção como um elemento, quase como um arranjo das músicas”, complementa Rebetez, que convidou o instrumentista Arto Lindsay para assinar a produção.

“O conheci (Arto) por encarte, como produtor de discos que amava, como o ‘Circuladô’, do Caetano Veloso; os da Marisa (Monte) e o primeiro disco do Carlinhos Brown”, relembra o arranjador.

O disco

Os sete temas de “O Corpo de Dentro” são acompanhados de uma abertura e de dois pequenos interlúdios que funcionam, segundo Lourenço, como “aforismos musicais que sugerem uma ideia de algo”.

Após a primeira faixa, “Abertura”, entra “Ozu”, com naipes de metais embalando o piano, a guitarra econômica de Lourenço e o toque dos tambores. Já em “Pontieva”, os acordes de Lourenço se sobressaem num clima favorável para a improvisação dos músicos que o acompanham em estúdio.

Para a gravação de “O Corpo de Dentro”, Lourenço Rebetez contou com a contribuição de cerca de 13 instrumentistas: um trio responsável pela cozinha jazzística (bateria, baixo acústico e piano); um naipe de sopros e um trio responsável pela percussão.

Ainda de acordo com o músico, que tem ascendência baiana, incluir instrumentos de matriz africana em seu trabalho se deu com o intuito de conferir um sabor especial às composições.

“A intenção era usar a percussão como protagonista, trazê-la para o primeiro plano”, garante o guitarrista.

Ao trazer instrumentos como o Rum, Rumpi e Lé para o primeiro plano, Lourenço nos convence que eles podem assumir o papel de protagonistas. “Esses ritmos milenares podem servir de matéria prima para uma criação moderna e intrinsecamente brasileira”, ressalta.

 

(link para publicação on-line:  http://www.gazetaonline.com.br/_conteudo/2016/06/entretenimento/cultura/3950568-jazz-com-a-pegada-e-o-ritmo-do-brasil.html )

Mauro Ferreira
blog notas musicais

♪ A sólida e eclética formação musical do compositor e guitarrista paulistano Lourenço Rebetez está entranhada nas dez faixas de O corpo de dentro (Dueto/Red Bull Studios), álbum instrumental produzido por Arto Lindsay que marca a estreia de Rebetez no mercado fonográfico. Além de ser formado em guitarra e em composição de jazz pela Berklee College […]

♪ A sólida e eclética formação musical do compositor e guitarrista paulistano Lourenço Rebetez está entranhada nas dez faixas de O corpo de dentro (Dueto/Red Bull Studios), álbum instrumental produzido por Arto Lindsay que marca a estreia de Rebetez no mercado fonográfico. Além de ser formado em guitarra e em composição de jazz pela Berklee College of Music de Boston (EUA) e de ter estudado composição erudita na Escola de Música de São Paulo (EMESP), o artista teve aulas de guitarra com o violonista Chico Pinheiro – virtuose da contemporânea cena instrumental brasileira – e de composição popular e de ritmos afro-brasileiros com o genial Letieres Leite (mentor da baiana Orkestra Rumpilezz). Sedimentada com o estudo do jazz, sobretudo o jazz do baixista norte-americano Charles Mingus (1922-1979), do pianista norte-americano Duke Ellington (1899-1974) e do pianista canadense Gil Evans (1912-1988), a formação musical de Rebetez deu ao músico habilidade para compor e arranjar os oito temas e os dois interlúdios que compõem o repertório autoral do álbum O Corpo de Dentro, lançado em 24 de maio deste ano de 2016 com distribuição da Tratore. Temas como Birjand, Imã, Ozu e Pontieva são orquestrados em O corpo de dentro com fartos instrumentos de sopros, harmonizados com o toque da guitarra de Lourenço Rebetez – que pilota a programação eletrônica do Interlúdio 2 (Supernova) – e com a (tal) influência do jazz.