Paraíso Perdido

Assino a trilha sonora original desse belíssimo longa da Monique Gardenberg.

Foi um trabalho intenso e delicioso de fazer, produzido quase que inteiramente no meu estúdio.

É um desafio estimulante escrever música para cinema. Exige confiança do diretor em quem está compondo, já que a música tem o poder de mudar completamente o registro e o subtexto de uma cena. Por outro lado, é preciso que o compositor se livre da tentação de fazer sua “própria” música, mas sim que trabalhe em prol das cenas, não interfira nos diálogos e colabore para sofisticar a apreensão do espectador.

Em Paraíso Perdido, além da trilha original, há no filme diversas regravações de clássicos da música dita brega, que tiveram a direção musical de Zeca Baleiro.

No elenco estão:

Lee Taylor

Julio Andrade

Julia Konrad

Jaloo

Erasmo Carlos

Seu Jorge

Hermila Guedes

Malu Galli

 

Abaixo copio fotos e duas críticas sobre o filme:

 

 

 

GLOBO.COM :

É difícil acreditar que o cantor que há duas semanas fez o público carioca dançar, ao apresentar o show da turnê Mestiço pela primeira vez na cidade do Rio de Janeiro (RJ), seja também o ator que está sendo visto desde quinta-feira, 31 de maio, na pele da drag queen cantora Imã, uma das personagens da galeria afetuosa de loosers de Paraíso perdido, primeiro filme dirigido por Monique Gardenberg desde Ó paí ó (2007), exibido há onze anos.

Mas, sim, trata-se da mesma pessoa. No caso, de Jaime Melo, cantor, compositor e (a partir de agora) ator nascido há quase 31 anos na cidade paraense de Castanhal (PA). Com o nome artístico de Jaloo, este cantor que emergiu nos presentes anos 2010 na cena tecnobrega de Belém (PA) brilha como ator nesse longa-metragem que segue o tom melodramático da canção popular de cepa mais sentimental. Em bom português, da música caracterizada como brega no dicionário da elite cultural do Brasil.

Em cena, Jaloo também canta, pois Imã é uma das atrações musicais da boate Paraíso perdido, cenário que concentra a maior parte da ações deste filme que também traz no elenco outros cantores que se saem bem no papel de atores. São os casos de Seu Jorge e de Erasmo Carlos, que estava afastado do cinema desde 1984.

A canção popular romântica do Brasil dos anos 1970 e 1980 é, de certa forma, a personagem central deste filme, conduzindo a trama ambientada nos dias de hoje. Fundamental para criar a empatia do espectador com a história, a trilha sonora foi construída sob direção musical de Zeca Baleiro, cantor e compositor maranhense que sempre direcionou olhar afetivo para a produção autoral de cantores e compositores populares como Odair José, Reginaldo Rossi (1944 – 2013) e Márcio Greyck.

Do repertório de Greyck, aliás, Jaloo – ou melhor, Imã – dá voz à balada Impossível acreditar que perdi você (Márcio Greyck e Cobel, 1971), clássico da sofrência que, a rigor, é a mesma sofrência que reverbera na recente canção Say goodbye, lançada por Jaloo em março como primeiro aperitivo do segundo álbum do artista, ft., previsto para o segundo semestre deste ano de 2018.

Ao longo do filme, cuja trilha incidental foi orquestrada pelo compositor e músico Lourenço Rebetez, outras (belas) canções do mesmo estilo popular são interpretadas no palco da boate Paraíso perdido pelos atores do longa-metragem. Um exemplo é o maior sucesso da carreira do cantor pernambucano Augusto César, Escalada (Jorge Silva e Carlos Sérgio, 1987), que ganha a voz de Júlio Andrade, ator excepcional que encarna Angelo, filho do patriarca José, vivido por Erasmo Carlos. Merece, a propósito, menção honrosa a cena em que Angelo dubla a gravação original de Minha coisas (Rossini Pinto, 1970), canção celebrizada na voz do goiano Odair José, ídolo da canção popular brasileira da década de 1970. Todos amam (e todos sofrem) na trama.

Cerca de 20 músicas do gênero aparecem ao longo do filme, muitas na voz de Jaloo que, na pele da fictícia Imã, mostra uma segurança vocal que ainda não havia sobressaído nas gravações feitas pelo artista na vida real. É Jaloo quem canta De que vale ter tudo na vida (José Augusto, Miguel Plopschi, Marcelo, Salim) – canção que alavancou em 1973 a carreira do cantor carioca José Augusto – e Não diga nada (Leonardo Sullivan, 1981), hit na voz do cantor Gilliard. Jaloo segue trilha que desemboca em Amor marginal (2012), música do cantor e compositor Johnny Hooker, seguidor das tradições sentimentais da canção popular. Com a voz aveludada de timbre acariciante, Seu Jorge também brilha, revivendo Doce pecado, música do cantor e compositor Fernando Mendes lançada na voz de Reginaldo Rossi, ícone desse gênero de canção celebrado no filme.

Um dos méritos da trilha sonora – e da direção musical de Zeca Baleiro – é ter ido além dos maiores clássicos do cancioneiro sentimental brasileiro. Há evidentemente alguns standards, como o bolero Tortura de amor (Waldick Soriano, 1962). Mas há também músicas menos ouvidas e regravadas. Voz dominante no roteiro musical, Jaloo canta uma delas, Jamais estive tão segura de mim mesma, música da lavra popular de Raul Seixas (1945 – 1989) lançada na voz da cantora Núbia Lafayette (1937 – 2007).

Outra – Não creio em mais nada (Totó, 1970), sucesso do cantor capixaba Paulo Sérgio (1944 – 1980) – é interpretada por Júlio Andrade. E há, ainda, a ousadia estilística de incluir na trilha sonora um sucesso de Roberto Carlos composto com o parceiro Erasmo, 120…150…200 Km por hora, ouvido na gravação original feita pelo Rei da sofrência para álbum lançado em 1970, mas também cantarolada por personagens como o gentil José, vivido pelo gigante Erasmo.

Com essa seleção musical e esse elenco, o filme Paraíso perdido ganha o espectador porque, mesmo minimizada na bibliografia musical brasileira, a antiga canção popula romântica nacional ecoa na memória afetiva do país, atravessando modismos e gerações.

FOLHA DE SÃO PAULO (Thales de Menezes)

Ao escolher como cenário uma boate de música brega, “Paraíso Perdido” faz uma delicada homenagem a um gênero musical que resiste ao tempo. Talvez porque exprima valores humanos universais em suas letras que pendem ao desencanto amoroso.

Em uma canção brega, o narrador sobrevive às adversidades. Acontece o mesmo com os personagens do sensível filme de Monique Gardenberg.

Paraíso Perdido é o nome da casa noturna de administração familiar, comandada pelo cantor veterano José, tipo sob medida para um Erasmo Carlos que leva à tela o charme rude que lhe valeu o apelido de Gigante Gentil. Outro cantor no elenco é Seu Jorge, no papel de Teylor.

Mas quem surpreende mesmo na passagem da música para a atuação é Jaloo, que interpreta Ímã, neto de José. Ele é um cantor crossdresser, o caçula paparicado do clã musical. Alguns de seus números são incríveis, e Jaloo representa com desenvoltura um papel amplo e complexo na trama.

Como em todos os filmes de sua carreira, Julio Andrade é o grande ator em cena. Como Angelo, filho de José e tio de Ímã, ele é o motor do filme. Ele tem uma filha, Celeste, interpretada por Julia Konrad, também cantora na boate.

Mais uma vez, Julio Andrade compõe um personagem intenso, que convence e cativa qualquer espectador. E canta muito. Dá até vontade de comprar discos de Angelo, caso esses existissem.

O enredo se desenrola à espera do retorno de Eva (Hermila Guedes), a mãe de Ímã, prestes a deixar a prisão depois de cumprir muitos anos de pena por assassinato. Na cadeia, mantém uma relação com Milene (Marjorie Estiano), que também irá interagir com o núcleo familiar.

Além dos ótimos números musicais no palco do Paraíso Perdido e do elenco afiado, um acerto do filme é criar um personagem que vai conhecendo aos poucos os membros da família e descobrindo seus segredos. Ele conduzirá o espectador durante a sessão.

Lee Taylor vive o policial Odair, que fortuitamente socorre Ímã de um ataque de homofóbicos na calçada da boate. Preocupado com essas agressões, que são corriqueiras, José acaba contratando Odair para um bico como segurança do lugar. E ele participará bastante dos desdobramentos da história com a chegada de Eva.

“Paraíso Perdido” é encantador, o longa mais atraente da filmografia de Monique Gardenberg, que inclui “Jenipapo” (1995), “Benjamim” (2004) e “Ó Paí, Ó” (2007).

Seu roteiro se encaixa com as músicas escolhidas por ela nesse universo musical tão popular, mas não exatamente muito famosas. É um lado B do brega, que funciona muito bem na narrativa.

O único complicador na trama é um excesso de personagens. Na parte final, o roteiro tenta enredar todos eles numa mesma história, e as conexões ficam tênues, até um pouco confusas. Mas isso não chega a afetar a agradável experiência musical e cinematográfica do filme.

XENIA

“Xenia” é o nome do primeiro disco da cantora de mesmo nome. O álbum teve a produção musical assinada por Lourenço Rebetez e Pipo Pegoraro. A seguir uma resenha de Cleber Facchi e o vídeo de making of do disco, que mostra um pouco do o processo de criação e produção deste trabalho.

“Entre tambores e ambientações tribais que conversam com a música produzida em território africano, versos marcados pela forte religiosidade, flertes com o jazz, diálogos com a cultura Iorubá e confissões intimistas

Xênia França abre as portas do primeiro álbum em carreira solo. Cinco ou mais décadas de referências musicais (e históricas) que se dobram de forma a atender à poesia minuciosa da cantora baiana, como uma madura extensão de tudo aquilo que vem sendo explorado pela artista nos últimos trabalhos como integrante do coletivo paulistano Aláfia.

Obra de enfrentamento, Xenia (2017, Independente) carrega nos versos da inaugural Pra Que Me Chamas? um profundo debate sobre apropriação cultural, detalhando parte do território poético desbravado pela cantora ao longo do disco. “De vez em quando / Um abre a boca / Sem ser oriundo / Para tomar pra si / O estandarte / Da beleza, a luta e o dom / Com um papo / Tão infundo“, canta enquanto a percussão forte ocupa todas as brechas da faixa, transportando França para o mesmo universo de outros representantes do Afro Pop – sejam eles nacionais ou estrangeiros.

A mesma força dos versos se reflete em músicas como Preta Yayá (“Música preta, sou teu instrumento, vim pra te servir“) e, principalmente, Respeitem Meus Cabelos, Brancos, sétima faixa do

disco. Originalmente gravada por Chico César, a canção se transforma de maneira explícita na voz forte de França (“Vamos ser francos / Pois quando um preto fala / O branco cala ou deixa a sala / Com veludo nos tamancos“), lembrando em alguns aspectos a mesma atmosfera e conceito de Don’t Touch My Hair, composição gravada pela norte-americana Solange em A Seat at The Table (2016).

Mesmo a rica base instrumental que garante sustento aos versos de França encanta pelo forte diálogo com a música negra. Arranjos que atravessam a obra de veteranos como John Coltrane e Harbie Hancock, mergulham em elementos do Hip-Hop e R&B e sutilmente pervertem a música pop de forma particular, como se a cantora brincasse com todas as possibilidades em estúdio. Um exercício orientado pela voz presente da cantora, porém, completo pela interferência dos produtores Pipo Pegoraro e Lourenço Rebetez durante toda a execução do registro.

Coesa representação do colorido instrumental que abastece o disco sobrevive na experimental Perfeita Pra Você, oitava música do álbum. Em um intervalo de apenas quatro minutos, batidas po

ntuais abrem passagem para a lenta construção dos arranjos, detalhando sintetizadores futurísticos e guitarras psicodélicas que se conectam diretamente à voz de França, maquiada pelo uso de efeitos eletrônicos e inserções lisérgicas. Um mosaico criativo que ainda abre passagem para o som eletrônico de A Nave ou mesmo o minimalismo confessional de músicas como Breu e Destino.

Raivoso e delicado, intimista e ainda capaz de dialogar com uma parcela maior do público, Xenia parece jogar com as possibilidades a cada novo fragmento de voz. Instantes em que a cantora abraça a obra de novos colaboradores, como a poetisa Roberta Estrela D’Alva, resgata elementos originalmente testadhttps://www.youtube.com/watch?v=XiF-NZyGbbY&feature=youtu.beos como integrante do Aláfia ou mesmo projetos assinados em parceria com diferentes nomes do rap nacional. Da exuberante imagem de capa do disco – uma fotografia de Tomás Arthuzzi com direção artística de Oga Mendonça –, ao evidente cuidado na formação dos versos, uma obra em que Xênia França se revela ao público por completo.” (Cleber Facchi).

 

 

 

 

 

SHINE

Os graus de percepção em “Shine” fazem de sua partilha uma experiência incomum. Da quietude à fulguração, passando pela opacidade, a Cia. Perversos Polimorfos alcança uma dramaturgia de emanações.

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Por meio dela, corpo, luz, sombra, música e palavra constituem relevo para o levantamento exploratório de urgências do presente. A forma implica angulações políticas e existenciais. Sujeito e sociedade premidos por obscurantismo e pós-verdade.
No composto híbrido de dança e teatro, seis autonomeados intérpretes-criadores (três mulheres, três homens) dissolvem noções históricas do drama e da coreografia.

O percurso estético-ideológico trançado pelo diretor Ricardo Gali olha para os 11 anos da companhia. Sacode memórias de práticas e saberes na interface com obras da dramaturga inglesa Sarah Kane e do artista de rua britânico Banksy.
Sucedem-se narrativas imagéticas ou jorros verbais que tratam da subsistência do trabalhador da arte, da intolerância sem fim, da inconsistência da representatividade democrática e até da Mãe Terra, esse corpo celeste sem luz própria que o humano habita, numa sequência de inspiração butô com galhos de árvore.
Súbito, afloram canções de Cyndi Lauper e The Doors sob corporeidade nada pop, abstrata.
A experiência consiste em navegar pelo mapa de sensações geradas no vão do segundo andar da Casa do Povo. É nesse ambiente que o espectador se vê integrado ou à borda da cena por meio de indicações sutis. Coloca-se em movimento interno e externo do mesmo modo que os intérpretes (até Gali e sua assistente Patrícia Bergantin pontuam como atuantes e contrarregras).
A vastidão, o pé-direito alto e os janelões caracterizam a arquitetura modernista de cujo ventre vazio são paridas visualidades potentes.
O ato final promove a cinestesia com esplendor. O legado e a força criativa do presente viram fluxo de complementaridades e dissensos na paisagem sonoro-visual.

A matéria da luz se faz (o “brilho” do título em inglês), desenhada por Aline Santini. E a massa de corpos se descompacta em frames nas presenças pilares de Carolina Canteli, Danielli Mendes, Danilo Patzdorf, Gabriel Tolgyesi, Jerônimo Bittencourt e Josefa Pereira.

 

 

Radio Gana

thumb-radioRadio Gana é uma colaboração entre Lourenço Rebetez e Xênia França em parceria com os demais instrumentistas do grupo, que se alternam permanentemente.

O projeto nasceu em 2013, a partir de encontros semanais no palco subterrâneo do Tatu Bar, em São Paulo, onde a cada apresentação novas músicas ganhavam vida e músicas antigas, novos significados.

O repertório é constituído de composições dos próprios instrumentistas que participam do projeto e de canções pouco conhecidas da música brasileira, selecionadas através de pesquisa de Xênia França e re-arranjadas por Lourenço Rebetez.

http://radiogana.com/

 

Movimento Para Um Homem Só

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“Movimento para um homem só” é um espetáculo de dança da Companhia Perversos Polimorfos, dirigido por Ricardo Gali e interpretado pelos bailarinos Jerônimo Bittencourt e Lucas Delfino.

A trilha sonora do espetáculo é assinada por Lourenço Rebetez e foi produzida em parceria com Zé Godoy no Écoutez Produtora de Som.

O motivo inicial no qual o trabalho se inspira são as intervenções criadas pelo artista plástico inglês Banksy, em parceria com os grafiteiros brasileiros Os Gêmeos, pertencentes à ocupação “Better out than in”, ocorrida em Nova York, outubro de 2013

Escute trechos da música abaixo:

A Hora Amarela

thumb-hora-amarelaPrimeira montagem no Brasil de ‘Through the Yellow Hour’, do dramaturgo norte-americano Adam Rapp, cuja ação se passa em uma Nova York sitiada e arrasada por uma guerra misteriosa e violenta.

A trilha sonora é de Lourenço Rebetez e Zé Godoy.

Texto de Luiz Felipe Reis sobre “A Hora Amarela” para o jornal “O Globo”:

O palco assemelha-se a um bunker. Dentro da caixa preta do teatro foi instalada uma outra caixa, cinzenta, com paredes que emulam chapas de aço. O visual é austero. O efeito, claustrofóbico. Assinado por Daniela Thomas, o cenário é propício ao sufocante texto da peça “Hora amarela”, em cartaz no CCBB, num projeto idealizado por Mônica Torres. Escrita pelo americano Adam Rapp e apresentada pela primeira vez no país, a obra é dirigida por Monique Gardenberg, que cria para o trabalho um jogo de claro e escuro cujo tom dominante é o lusco-fusco, a zona cinzenta do indefinido, que rege tanto a atmosfera de tensão das cenas como a dubiedade e a inconstância dos personagens da trama. Se as duas últimas encenações de Gardenberg – “O inverno da luz vermelha” (2011), também de Rapp, e “O desaparecimento do elefante” (2012) – foram concebidos sob a orientação de termos como solidão e estranhamento, “Hora amarela” instaura “o medo, o sobressalto”, diz a diretora:

– Os personagens vivem sob constante ameaça. Assustados, inseguros.

Encenada em Nova York pela primeira vez em 2012, a obra espelha o embate entre dois mundos, a superfície da terra e o subterrâneo. A encenação só mostra o que há embaixo. Não se vê o que há em cima, apenas se ouve, se imagina. E o que a trilha de Lourenço Rebetez e Zé Godoy indica é que, por lá, o que há é um fim dos tempos militarizado e violento, que torna a superfície um ambiente inóspito e inabitável. Bombas, tiros, entre outros estrondos assustadores, fazem ranger a cena.

– Lá em cima, ou do lado de fora, a vida já não é mais possível – diz Gardenberg. – Só embaixo…

O lado de baixo é onde se desenrola toda a ação da peça, o tal bunker acinzentado que serve de abrigo a uma mulher isolada e acuada, Ellen, interpretada por Deborah Evelyn. Escondida há 52 dias no subsolo, ela faz de tudo para permanecer viva e para não perder a esperança de rever o marido, que desapareceu quando deixou o esconderijo onde viviam na “hora amarela” – momento do dia em que seria seguro ir para o lado de fora. Ledo engano. O exército invasor foi implacável. E é com medo de que aconteça o pior que Ellen não deixa o buraco onde vive, e está sempre sobressaltada, com arma em punho, quando batem à sua porta.

– Todos os personagens que vêm de fora trazem a guerra, a violência e o medo da morte para dentro daquele lugar – diz o ator Emílio de Mello.

Ele interpreta dois personagens, entre eles o professor Hakim, um iraquiano cristão, tradutor de árabe, que teve contato com o marido de Ellen e traz notícias aterradoras do mundo externo.

Na visão da diretora, o texto de Rapp é “um comentário sobre o apocalipse” no mundo onde vivemos – hoje ou num futuro próximo -, “uma espécie de paraíso perdido”.

– A peça apresenta esse choque entre a violência extrema do mundo externo, em guerra, desumanizado, e os resquícios de humanidade, afeto e esperança que tentam resistir e sobreviver no subterrâneo – diz a diretora. – A Helen é uma mulher à beira de perder a humanidade, mas que luta para que isso não aconteça. Ela é uma espécie de resistência a tudo o que se perdeu do lado de fora.

Além de Hakim, Ellen é surpreendida pela chegada de outras personagens, como Maude (Isabel Wilker), uma jovem viciada em drogas que carrega um recém-nascido na mochila, assim como outros, vividos por Darlan Cunha, Daniel Infantini e Daniele do Rosario.

– Se a violência e a destruição são características intrínsecas do ser humano, também existe o outro lado – diz Deborah. – A busca pela vida, a necessidade do outro e do afeto são traços tão primitivos e essenciais quanto essa agressividade. Acho que a Ellen, assim como a peça, traduz, mais do que a violência, a nossa constante luta e busca pela vida.

“Assisti ‘A Hora Amarela’, de Adam Rapp, com Mônica Torres, no Rattlestick Theater, em Nova York, no inverno de 2012. Naquela sala pequena, subterrânea e abarrotada, a gente parecia estar numa extensão do palco: em algum lugar escondido nos escombros de uma cidade destruída, no fim de uma guerra que talvez proibisse qualquer futuro – todos lá, nós, espectadores, num ato comum de resistência.

Saímos da peça pensando em como trazê-la para o Brasil. Desde então, a cada vez que vejo, no horizonte, a poluição paulistana tingindo o céu de amarelo-laranja, penso na peça e, de uma certa forma, na iminência possível do futuro do qual ela trata.

É um futuro sombrio? Talvez. Mas há bastante grandeza em Ellen e na sua tentativa de sobreviver e lutar contra um mundo aterrador. Não sei e, no fundo, pouco importa o que Ellen pensa e o que pensam os inimigos, pouco importam as ideologias. O que importa é querer durar, não querer se encaminhar para o nada sem resistir, isso não é mesquinho: a resiliência é nobre. É por essa razão que a peça me toca tanto.

Não sei mais quem escreveu esta frase, se fui eu ou se foi Isabel Wilker, quando a gente trocava mensagens sobre a peça: ‘fundamentalmente, somos e seremos sempre humanos, capazes de emocionar e comunicar e de resistir – inclusive contra nossas piores invenções. E enquanto pudermos sentir a dor, o amor do outro (e, acrescento, a mordida do desejo), seremos capazes de trransformar a nós mesmos e ao mundo”.

– Contardo Calligaris

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